quinta-feira, 10 de julho de 2014

O Empreendedorismo Cívico de José Monir Nasser.

(“Economia do Mais – Coisas que você não ouvirá de nenhum outro economista - de José Monir Nasse 
Tríade Editora, 2003)”

Uma das razões da existência da Cátedra Ozires Silva é constituir-se em um espaço de construção de conhecimento para o empreendedorismo cujo patrono, inspirador e homenageado, Sr. Ozires Silva, defende apaixonadamente.

Para nossos caros amigos da Cátedra, gostaria de contar um pouco aqui do que se trata esse livro estupendo, e o quanto é bom trocar ideias sobre o que escreveu o memorável economista paranaense José Monir Nasser (1953-2013).

Como ele próprio definiu Economia do MaisCoisas que você não ouvirá de nenhum outro economista é um livro incomum, um livro de advertências, “foi feito para provocar e não para teorizar”. Recolhimento das transcrições das 12 palestras presididas pelo economista e restaurador cultural José Monir Nasser, realizadas no I Curso Paranaense de Desenvolvimento Contemporâneo, entre 2001 e 2002 no Instituto Paraná Desenvolvimento (IPD).  

A começar pelo o que se entende de economia, Monir adverte que ficamos “desbussolados” por força de diferentes abordagens e modismos e aí vamos perdemos os fundamentos das coisas: “a economia é um conjunto de ações organizadas para produzir os meios materiais de sobrevivência humana. Qualquer acréscimo à ciência econômica deveria pautar-se nas novas maneiras de se obter esses meios”.

Empreendedorismo Cívico

Dos doze capítulos do livro, quatro discorrem sobre o que o autor define como “empreendedorismo cívico”, um empreendedorismo que longe da utopia, é real e factível. Nasser quer introduzir o leitor ao o que ele chama de nova competitividade de pequeno âmbito, uma progressiva possibilidade de organização econômica e um novo tipo de intervenção a que ele chama de empreendedorismo cívico, ou seja, um processo fruto de interações sociais repetidas para desenvolver os indivíduos capazes de produz capital social baseado nas identidades da sociedade, sob forma de valores. O capital social aqui tem o sentido amplo de compartilhar coisas comuns, seja um destino, um mito fundador ou uma profecia escatológica a que ele chama de civismo. Monir retoma Ortega y: “sociedade é o que se produz automaticamente pelo simples fato da convivência”. Monir é perseverante quanto ao argumento de que o Estado, as relações jurídicas e o mundo civil vem depois e que em qualquer sociedade há poder, mesmo antes de haver governo! Ou seja, grandes discussões! Discussões que mais vale discutir, ampliar, repensar, comparar, atenuar, contextualizar, ao invés de comodamente tomar a maniqueísta atitude do “só vale se for certo ou do errado”, do “concordo ou discordo”, diante de qualquer coisa.

Quando abrimos a consciência e nos libertamos um pouco do senso comum, esse livro se transforma em um exercício intelectual! Esteja pronto para recategorizar coisas nas quais acreditava!

Monir conta que a expressão “empreendedorismo cívico” foi usada pela primeira vez no processo de revitalização do Vale do Silício, quando seus executores publicaram um relatório de recomendações voltadas a processos de tomada de ação. Eles perceberam que não se pode criar identidade onde ela já não existe.

Outra conclusão é que o empreendedor cívico terá que começar onde pelo menos houver farrapos de identidade, onde puder promover a interatividade, onde ele pode escrever um enredo possível, no sentido de adequar ao o que é factível, a partir dos recursos que já se tem.

Ao mostrar exemplos, ele fala da região da Emilia-Romagna na Itália, e apresenta como a região foi capaz de tornar os envolvidos em um projeto comum mais competentes, o que se tornou o segredo da competitividade da região, ou como as interações fizeram com que a província basca de Mondragón tivesse expulsado do ambiente social a ganância, a vaidade e a dominação. Mesmo que talvez acreditemos que isso não seja tão plausível assim em contextos nacionais, é interessante ir a fundo a histórias da região da Emília-Romana e de Mondragón para sentir o quanto além de verossímeis, são possíveis! Não há modelos a seguir,  talvez essas experiências sejam irreproduzíveis, tais as suas especificidades...Tive a oportunidade de fazer esse exercício para minha dissertação de mestrado  quando estudava as interações que fizeram a potência do Arranjo Produtivo Local (APL) de Software de Pato Branco e região. Lá, acabamos por verificar, dentro de uma ótica de análise histórica e também a partir da abordagem institucional da economia, uma série de sinais de uma sociedade que soube, apesar das dificuldades, se desvencilhar do “descontinuismo político” em prol de um projeto comum para a cidade, o de se tornar referência no setor no Paraná. Academia, governo local e sociedade se juntaram as mãos pela sustentabilidade do projeto. Hoje a região é reconhecida e procurada por grandes investidores e interessados em aprender como avançaram institucionalmente o que resultou em uma aglomeração produtiva e inovadora na produção de tecnologia.

“O empreendedor cívico não quer mudar o mundo pois sabe que essa pretensão beira ao delírio!”. A assertividade de Monir é desconcertante: “sabe-se prisioneiro da identidade que só existe no pequeno âmbito. Não pode ultrapassar o pequeno âmbito, porque não pode atuar num vácuo de identidade: sem identidade não há confiança”.  E assim ele segue entre exemplos e em uma leitura divertida, rica e profunda ao mesmo tempo.

Comunidades de Desenvolvimento: mais Embraeres para o Brasil

Para explicar qualquer coisa, Monir toma a coisa pelo que ela é. Antes de ser adjacente a características e critérios criados por teorias, opiniões ou argumentos, correntes filosóficas, ideologias, ou o que quer que seja, a coisa tem a sua natureza intrínseca e inexpugnável e é sempre a partir daí, de maneira simples e didática, que ele começa.

A competitividade da firma, por exemplo, depende de uma tríade sistêmica que envolve: 1. sua própria competência; 2.condições econômicas; 3.entorno favorável. E essas condições impactam de maneira diferente cada uma das firmas. E mais além, ele constata que processos humanos, seja uma pessoa, uma firma, uma organização, uma comunidade,  ou um grupo social inteiro podem passar pela mesma via de desenvolvimento.

Para Monir, Mondragón, Emília-Romana, Jacksonville, os clusters dentro da perspectiva do Michael Porter ou a região de Heidelberg na Alemanha são categorias do que ele chama de comunidades de desenvolvimento, seja de competição, de talentos, locais ou de aprendizado. Comunidade de desenvolvimento pode ser tanto uma empresa quanto um território. Para ele, competitividade está intrinsecamente relacionado à semântica exercida dentro da comunidade de desenvolvimento, que ele define como um agrupamento de indivíduos que têm forte identidade local, um núcleo duro capaz vislumbrar objetivo comum com
oportunidade, à qual (interessante!) nenhum processo de globalização é capaz de impor-se unilateralmente, quando a comunidade cria uma inteligência própria, ela se adapta e se beneficia do que a globalização tem de bom, mas ela permanecerá inexpugnável!

A autocrítica de Monir lhe permite raros exemplos nacionais: “O maior exemplo de sucesso econômico brasileiro na economia globalizada é o avião brasileiro, resultado da interação do talento dos engenheiros do ITA, da capacidade de pesquisa do CTA do Ministério da Aeronáutica e da competência da gestão privada da Embraer.” Quando tudo começou, lá estava o nosso patrono, Sr. Ozires Silva a comandar a interação dos militares brasileiros com os melhores engenheiros aeronáuticos americanos e brasileiros!

Monir acredita em mais Embraeres para o Brasil!

Refletindo sobre isso, e tendo em mente a construção do conhecimento desde David Ricardo, Schumpeter, Penrose, o problema dos critérios de competitividade da firma envolve mais do que uma combinação de imaginação, de “bom senso” na gestão, de autoconfiança e de qualidades pessoais do empreendedor. Este problema vincula-se tanto às “expectativas” da firma, quanto à maneira que interpreta o seu “entorno”, em função de recursos tangíveis e intangíveis, internos e externos. É por isso que a institucionalidade não deve ser considerada como recurso dado, ela pode ser desenhada pela firma por meio de processos compensatórios de suas interações repetidas que fazem gerar, ou não, um espectro favorável ao florescimento dos talentos, ao crescimento e das comunidades de desenvolvimento.

Economia globalizada e a deflação construtiva

Mais atual do que nunca, pois trata de observações fundamentais, o livro também traz as diferenças entre a economia fechada e a economia globalizada na qual as empresas têm dois grandes desafios que se confundem com duas grandes oportunidades: a forte concorrência e o peso do mercado.
Monir chama a atenção à queda das fronteiras e a dispersão das tecnologias que reduzem as distâncias e o poder do mercado que vem do poder crescente de consumidores mais bem informados que obrigam as firmas a elevar a qualidade e baixar os preços, ou seja, o fenômeno de deflação construtiva (para diferenciá-lo da deflação destrutiva de 1929), porque o consumidor se beneficia sob a forma de preços mais baixos e de maior qualidade. Entretanto, diz Monir, essa mesma deflação construtiva é responsável por distúrbios no mercado de trabalho criados pela economia de custo que universaliza a automação, buscam fusões ou transferem sua produção para locais com custos menores.

O Mundo do Mais e o Mundo do Menos

Mas os conceitos centrais do livro envolvem o que autor diferencia entre o Mundo do Mais e o Mundo do Menos.

Baseando-se em elevados sentidos aristotélicos, Monir parte da hipótese de que o sentido da vida humana se realiza por amor à excelência, o agathon, ou seja, uma força vital que move qualquer processo humano. É o que o inspira a desenvolver o conceito do Mundo do Mais: “Santo Agostinho perguntado por que encomendara sapatos de um ateu, teria dito que o propósito do sapateiro é fazer bons sapatos, eis a razão do Mundo do Mais”. A lógica do Mundo do Menos é produzir quaisquer sapatos, de modo que dê menos trabalho possível, mesmo que comprometa a qualidade, ou seja, a procura da excelência substituída pela obsessão do menor esforço.

Pessoas, firmas, organizações, comunidades do Mundo do Mais “se comprometem com a qualidade, com produzir valor para os outros e para si próprio e usufrui deste aprendizado em forma de prosperidade e qualidade de vida”. Enquanto o Mundo do Menos, hipnotizados pelo menor esforço,  propõe sempre menos: menos valor, menos salário, menos qualidade, “irremediavelmente preso à própria armadilha, quanto mais procura abaixar o custo mais o valor vai embora, mais os talentos desertam e mais a pobreza impera.”

Monir descreve com presteza as experiências de Jacksonville e como indicadores de qualidade serviram para melhorar o debate, criar uma agenda limpa fazer com que a comunidade percebesse que as coisas estão interligadas, mais qualidade de vida, mais prosperidade (e o inverso). Ele demonstra, por exemplo, como os negócios do Mundo do Mais dependem mais das condições comunitárias e das interações desenvolvidas, ao constatar o que levou e os desafios de Mohammed Yunus para fundar o banco de microcrédito Grameen descritos magnificamente no livro. E por aí vai mostrando em toda a obra como os negócios do Menos têm base dependente de condições econômicas e como os negócios do Mundo do Mais convocam entusiasmadamente todas as fontes de valor possíveis: cientistas, artistas, bons profissionais, talentos, novas tecnologias; e aumenta o valor das coisas, serviços e processos, tornando a todos mais produtivos.

Palavras finais pela Talentópolis

Monir chamava muito a atenção para o que ele chamava de "projeto civilizatório Brasil". Bastante autocrítico, jamais tampava o sol com qualquer peneira! O capítulo sobre a Talentópolis ressalta bem isso levando o brasileiro a fazer um exame de consciência sobre o “savoir vivre da alma brasileira” e seu “belíssimo pragmatismo às avessas”. É extraordinário.

Por outro lado, enobrece empreendimentos brasileiros fantásticos e de como os brasileiros podem ser insuperáveis quando conseguem fazer com que sua criatividade combinada com inteligência funcionem melhor em grupo. Ele mostra inúmeros exemplos de como o Brasil se supera. O Brasil que deu certo para o Monir é o país que tropicalizou a soja, que a produz de norte a sul do país, obra do Programa Brasileiro de Melhoramento da Soja, iniciado em 1964. Ou como a Estação Experimental de Trigo de Bagé desenvolveu nosso trigo; o desenvolvimento da tecnologia de barragens de concreto por Itaipu; os ganhos do Brasil com a indústria aeronáutica e a Embraer; a tecnologia do álcool carburante; como se tornou maior produtor de frango do mundo; ou como significativo produtos de papel e celulose; a melhor tecnologia do mundo para extração de petróleo de águas profundas; como o Brasil detém todo o ciclo de enriquecimento de urânio; o primeiro transplante de coração....

Economia do Mais é um livro único. E o único livro que eu conheço que justifica a escolha de seu formato, trazendo uma “Advertência à Academia”. É para libertar “propositadamente o autor de diversos constrangimentos inférteis: a rigidez acadêmica, a diarreia bibliográfica, a tirania da padronização científica e a praga das notas de rodapé.” E nos convida a “ quebrar o marasmo e a seguir viagem...”

Uma viagem que conduz o leitor a compreender gradualmente nossas fortalezas e fraquezas, sem máscaras do politicamente correto. E constata, como parte da nossa natureza, princípios do Mundo do Mais e do Mundo do Menos convivem simultaneamente em nossas mentes. Entretanto, nutre-se sempre por uma esperança de que existe uma única ética empresarial possível capaz de amalgamar a todos nós, quando a ampliamos essa compreensão para outros setores da nossa vida: é o sapateiro fazendo bons sapatos!



Patrizia Bittencourt Pereira, Linguista, mestre em Desenvolvimento Econômico pela UFPR. Trabalha no Sistema Federação das Indústrias do Estado do Paraná (FIEP) desde 2005 e há 3 anos integrou a equipe do Centro Internacional de Formação de Atores Locais para a América Latina (CIFAL), um programa do Serviço Social da Indústria (SESI) em parceria com o Instituto das Nações Unidas para Treinamento e Pesquisa (UNITAR/ONU), onde se dedica a projetos de treinamento avançado em Gestão Urbana e Urbanização Sustentável para gestores públicos da América Latina. Desde 2010, dedica-se ao estudo e pesquisa sobre Economia Criativa, território; novos padrões, modelos de negócios e interações criativas. Colabora e é membro da Cátedra Ozires Silva de Empreendedorismo do Instituto Superior de Administração e Economia ISAE/FGV; Rede de Economia Criativa do Paraná (REDEC) e Rede Crie Futuros.


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